8 de fev. de 2012

Aventura no Alto Solimões

Há alguns anos acompanhei uma equipe da FUNAI até Atalaia do Norte para negociar a desocupação da sede da administração regional. Um grupo de indígenas, insatisfeito com o administrador, ocupou as dependências do imóvel exigindo a substituição do chefe. Veio de Brasília, assim, uma delegação, composta pelo diretor da área, uma assessora - que era uma índia nascida em Roraima e que concluíra um curso superior na capital federal - e um senhor que era uma espécie de segurança e informante.

Fomos de avião até Tabatinga, onde Davi Ticuna, Administrador da FUNAI nesta cidade, nos recebeu. Tudo isso aconteceu há 7 anos, e um dos poucos nomes que guardei foi o dele. Davi é uma pessoa muito simpática, e foi nosso cicerone na expedição. Chegamos já de tarde, e tínhamos de nos deslocar até Atalaia. Davi alugara uma potente lancha de 200 hp e lá fomos nós pelos furos do Rio Javari.

Chegamos e nos instalamos num hotel muito, muito singelo - quem conhece o interior do Amazonas faz ideia. Dividi o quarto com o Davi. A primeira providência foi ir direto à sede ocupada. É um imóvel bem próximo ao porto, e um grupo de indígenas ordeiro e simpático ocupara o pátio e a garagem. Havia índios marubos e matis, e muitos não falavam português. Alguns matis traziam uma espécie de bigode feito de pequenos palitos enfiados na bochecha, imitando uma onça. O interior da administração estava sendo preservado, não havia ninguém lá dentro.

Já se sabia que os líderes da ocupação não se encontravam lá, mas o diretor quis passar no imóvel para informar que havia chegado e as negociações iriam começar. Segundo os invasores, o administrador da época era ligado ao grupo político do prefeito, e havia denúncias de desvio de madeira apreendida e de uso dos recursos da FUNAI para favorecer tal grupo.

Não era a primeira vez que tais invasões aconteciam, elas eram a forma de os indígenas organizados se manifestarem, principalmente contra os administradores regionais. Era uma negociação difícil, pois eles impunham suas condições - normalmente a nomeação de um indígena ou de alguém de sua confiança para ocupar o cargo - e era muito complicado obter algum tipo de transigência.

No caso de Atalaia a ocupação fora pacífica, e os servidores simplesmente saíram, deixando a administração na mão dos índios que, como dito, preservaram o imóvel e se limitaram a ficar do lado de fora.

Em seguida fomos à sede do Conselho Indígena local, onde estavam os líderes. Já estava de noite, e eles estavam exaltados. Pareciam embriagados, e enumeravam os desmandos do administrador. O chefe da delegação, acostumado com essas negociações, escutava a todos e pontuava o mínimo possível o "diálogo". Os indígenas indicaram o nome de outro servidor da FUNAI para ocupar a administração. Ele, não indígena, estava lá, e era um dos mais exaltados (e também parecia embriagado). Aparentemente, era uma opção com a qual a direção da FUNAI não contava.

Depois de muito ouvir, o diretor começou a apresentar sua proposta: o primeiro passo para a negociação era a desocupação do imóvel e a retomada das atividades administrativas. Depois disso se discutiriam os possíveis nomes, dentre os quais o do atual administrador. Ou seja, anunciava-se a possibilidade de tudo continuar como antes.

Foi como jogar gasolina na fogueira. Os indígenas gritavam, encolerizados, e praticamente nos expulsaram da sede do Conselho. Voltamos caminhando para o hotel, e no caminho jantamos num churrasquinho, desses que ficam na rua. Estavam todos apreensivos, pois tínhamos passagem marcada para retorno dali a dois dias, e a solução do impasse parecia distante.

No quarto do hotel, Davi me comunicou que iria agir sozinho para tentar resolver a situação. Disse que seria necessária muita conversa, mas que tudo poderia se resolver. E me convidou a acompanhá-lo nessa missão.

Acordamos no outro dia às 5 da manhã e fomos à sede ocupada, ainda no escuro. Os índios já estavam todos acordados e se encaminhando para o banho. Havia uma fila deles na porta do banheiro. Fiquei maravilhado com a cena, e percebi de onde vem esse nosso hábito, que muito aprecio - tomar banho assim que acordar.

Davi foi logo confraternizando e conversando com todos. Mesmo sem querer, eu acabava chamando a atenção, em virtude da altura e, principalmente, da quantidade de pelos no corpo. Havia crianças indígenas que me cercavam e não paravam de olhar, espantadas, para meus braços e mãos.

Um dos índios veio falar comigo. Era o Branco, pois tinha a pele dessa cor. Com a ajuda de Davi, nos comunicamos. Ele informou que um de seus filhos havia ido morar em Manaus, e me perguntava, candidamente, se eu tinha notícias dele. Talvez ele pensasse que Manaus fosse do tamanho de Atalaia, e fosse fácil saber da vida de todos. Até hoje não esqueço do olhar do Branco, cheio de esperança de uma notícia sobre o filho.

Dali começamos uma longa peregrinação pela cidade, para conversar não com os líderes, mas com os pais deles. Davi os conhecia, e era essa sua estratégia. Conseguimos encontrá-los, mas não pude participar da conversa. Sempre tinha de ficar à parte, enquanto o Davi falava e falava.

Terminamos a tempo de encontrar o resto da delegação saindo do hotel, lá pelo meio da manhã. Voltamos à sede ocupada e entramos na sala do administrador. O diretor então marcou uma reunião para o começo da tarde, com a participação dos líderes da ocupação.

Na hora marcada, todos chegaram e o ambiente estava carregado. Resumo: após muita conversa, nem um nem outro - as partes concordaram com a assunção de um terceiro servidor da área, também não indígena, contra quem ninguém tinha nada. O atual administrador seria exonerado e o indicado pelos índios tinha proposta de outra área da FUNAI. Foi um alívio. Tenho certeza que esse desfecho só foi possível com a articulação do Davi, cujo trabalho permaneceu desconhecido da delegação.

Deixamos Atalaia e voltamos a Tabatinga. Na manhã seguinte, fomos com o Davi visitar e inaugurar um posto da FUNAI numa comunidade no Solimões. A aldeia era todo arrumadinha, com energia elétrica e uma boa estrutura. Mais uma vez, e completamente sem querer, chamei bastante a atenção. Se eu tivesse vendido os pelos do meu braço como souvenir teria ficado rico.

Foi realizada uma cerimônia de inauguração do posto - que na verdade havia sido reformado. Discurso com tradução simultânea para a comunidade indígena que ouvia, atenta. Discurso do Davi, do diretor, da assessora e claro, por que não, desse rapaz alto do "governo federal" acompanhando a comitiva. Ganhei de presente um colar de madeira, com diversos bichos entalhados, e uma tela de palha com uma pintura muito bonita.

Depois do discurso, um almoço para todos, uma grande comilança. A cada minuto lançavam um bodó assado na minha frente e fui comendo. Serviam vinho de açaí e sucos diversos. De repente, serviram uma grande posta assada, que parecia um pirarucu. Mas descobri que era jacaré, e estava delicioso.

À tarde retornamos para Manaus, findando essa aventura no Alto Solimões.

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