26 de out. de 2011

Os animais

Ao tomar o café da manhã, vi a imagem impressa na caixa de leite longa vida: uma cena bucólica de fazenda, tendo uma vaca sendo ordenhada manualmente, enquanto o bezerro aguarda ao lado.

Infelizmente, essa cena quase não mais é vista na indústria laticínia. Foi realidade há algum tempo, mas hoje foi substituída por processos praticamente industriais de produção.

Antigamente, as vacas eram emprenhadas pelo touro da fazenda. Pariam, e o bezerro a acompanhava sempre, mesmo na hora da ordenha. Nessa ocasião, os bezerros ficavam amarrados ao lado da mãe, esperando que o humano enchesse o balde com o leite.

Tive a oportunidade de conhecer uma fazenda de produção de leite, que vende seu produto a uma multinacional. Lá, as vacas são inseminadas artificialmente pelo veterinário. Quando parem, nunca mais veem sua cria. Se esta for fêmea (e normalmente é, pois o processo de inseminação já é direcionado para isso), é levada para um criadouro próprio, onde passará a comer uma ração especial desde logo. Se for macho, é vendido para uma fábrica de salsicha.

A rotina da bezerra é comer, comer, comer e chorar pela mãe. Quando chegar à época de procriação, o ciclo se repete. E todos nós nos fartamos, tomando nosso leite pelas manhãs, besuntando nossos pães com manteiga, dando iogurte para nossos filhos.

Esse processo retira dos animais a possibilidade de: manter relações sexuais, necessárias para o equilíbrio hormonal; ser nutrido pelo leite materno, substituído por uma ração sem calor; conviver com outros semelhantes, em especial com sua própria cria e sua própria mãe. Que consequências advirão disso?

É claro que não estou a comparar vacas com mães, bezerros com filhos. Mas creio que, ao subtrair esses e outros aspectos da existência dos animais, podemos estar comprometendo o futuro de uma maneira desconhecida, e talvez com graves responsabilidades. Se entendemos que tudo está encadeado, e que as coisas e os seres estão sempre a progredir, o fato de não enfrentarem tais experiências, sendo reduzidos a meros insumos de um processo industrial, diminui a essência do animal, e também um pouco da nossa. Não devemos ter humanidade sempre?

O mesmo ocorre com os frangos. Uma tia, proprietária rural, contou-me ter recebido uma proposta de uma grande empresa para estabelecer em seu sítio um criadouro de frangos para abate. Segundo relatou, a empresa fornece os pintinhos, os quais permanecem por 45 dias ininterruptos comendo. Nem dormir podem. As luzes ficam acesas permanentemente, e um empregado se encarrega de acordá-los para voltarem a comer.

Terminando o prazo, estão prontos para o abate. E lá vamos nós comer a carne de um animal estressado, que jamais dormiu, e cuja vida se resumiu a engordar no mais curto espaço de tempo possível.

28 de abr. de 2011

Pode o HIV ser uma boa notícia?

Francisco (nome falso) é um morador de rua aqui de Manaus. Tem cerca de 50 anos, é alcóolatra e vive sozinho, pelas ruas. Sua família é do interior, onde começou a trabalhar jovem como vaqueiro.

Logo o alcoolismo se manifestou, fazendo com que passasse por diversas ocupações, sem estabilidade. Enquanto a mãe era viva, viveu no interior sob sua proteção. Após a morte dela, veio para Manaus, onde vive em situação precária desde então.

Há alguns anos ele nos procura aqui em casa. Costumamos servir algum alimento para ele, e providenciar roupas, calçados e remédios, quando preciso.

No início, ele vinha pedir dinheiro, sempre inventando desculpas e argumentos questionáveis. Queria um trocado para pegar um ônibus, para voltar ao interior e rever os parentes, para comprar um remédio. Infelizmente, o alcóolatra, em sua compulsão, não percebe que seu discurso é frágil e muitas vezes contraditório.

Lembro de certa vez conversar com um rapaz que implorava por alguns trocados para pegar o ônibus. Ele estava visivelmente embriagado e trazia presa ao cinto a chave de uma motocicleta.

Outra vez, um homem, também apresentando sinais inequívocos de embriaguez, pedia dinheiro para o ônibus. Iria visitar uma irmã na Cidade Nova. Por uma coincidência, eu estava de saída para esse bairro, e o convidei a ir de carona comigo. Ele hesitou e pediu para que eu aguardasse alguns minutos. Sumiu e não apareceu mais.

Enfim, no começo Francisco fazia esses pedidos monetários, sempre negados. Eu fazia uma contraoferta: um prato de comida, um sanduíche, uma fatia de bolo, um copo de suco. Às vezes ele aceitava, contrariado. De outras, afastava-se xingando e ameaçando praticar algum mal contra minha residência.

Com o tempo, ele percebeu que não adiantava insistir quanto ao dinheiro, e já chegava pedindo comida. Em determinadas fases, ele parecia melhor, longe do álcool e das drogas (das quais também costumava fazer uso), e aí me pedia artigos de higiene: barbeador, sabonete, cortador de unhas.

Por algum tempo, aparecia barbeado, limpo, falante e bem disposto. Mas logo em seguida retornava desgrenhado, com as roupas sujas, descalço. E dopado. As feridas que ele traz nos pés, frutos de topadas, tropeções e outros acidentes, são impressionantes.

Às vezes, eu o encontrava em outros locais da cidade, sempre caminhando. Que disposição para caminhadas! Muitas vezes, depois de passar lá em casa, ele me informava sua trajetória: iria até o bairro X almoçar no Prato Cidadão, mais tarde iria tomar sopa numa igreja evangélica na Praça Y, à noite iria dormir na recepção do Pronto Socorro Z. Sempre locais muito, muito distantes uns dos outros.

Por vezes eu o encontrava também na instituição espírita que frequento, a Fundação Allan Kardec, participando das atividades de assistência a moradores de rua.

Acabamos por desenvolver uma afetividade. Em certas ocasiões, eu percebia que ele me procurava em casa com a desculpa da comida, mas o que queria mesmo era conversar, desabafar. Confidenciou-me alguns atos cometidos nas ruas e mesmo dentro do lar - essas circunstâncias é que me fazem preservar sua identidade.

Lembro-me que na manhã de um dia 25 de dezembro ele bateu nossa campainha. Estava transtornado porque entrara em desavença com um companheiro de rua e acabara "furando" o rapaz em plena noite de Natal. Confesso que respirei fundo para ouvir todo o relato. Na medida do possível o acalmei, fazendo-o recordar da justiça divina, que, cedo ou tarde, nos alcança.

Houve um momento em que ele parecia determinado a mudar de vida, e pediu minha ajuda para emitir novamente seus documentos pessoais, perdidos há muito tempo. Consegui algumas declarações em órgãos públicos e entrei em contato telefônico com o cartório no interior, em busca de seu registro, mas sem sucesso.

Enfim, assim estava sendo a convivência com Francisco. No começo deste ano, ele ficou doente. Não se alimentava direito e estava anêmico. Ajudei-o a adquirir remédios e ele praticamente vinha todos os dias em busca de alimento. De uma hora para outra, no entanto, não mais apareceu.

Temi pelo pior, e depois passei a considerar a hipótese de ele estar internado em algum hospital. Cerca de 2 meses sem notícias.

No começo de abril ele reapareceu. Barbeado, com roupas novas, até um relógio estava usando. E com uma notícia devastadora. Após uma crise intensa de diarreia, foi internado em um hospital, onde os médicos suspeitaram e realizaram o exame. Confirmou-se que estava infectado pelo HIV.

Com ar resignado, disse acreditar que contraiu a doença em relações sexuais mantidas com prostitutas e moradoras de rua da região da Feira da Panair, aqui em Manaus. Por algum tempo ele morou por ali, ganhando trocados ao carregar fardos para os barcos regionais e invariavelmente gastando tudo com a bebida.

Após ter alta do hospital, fora encaminhado para um abrigo mantido pela Igreja Católica no centro, e é onde vive. Lá tem alimento na hora certa, roupa de cama limpa e banheiro sempre arrumado. Com a orientação dos mantenedores do local, está empenhado em obter seus documentos pessoais. Como portador do HIV, pode obter uma aposentadoria pelo INSS.

Desde então, auxilio Francisco nessa longa busca por resgatar sua cidadania. Ele foi ao interior e conseguiu uma segunda via de sua Certidão de Nascimento. Tirou a Carteira de Identidade e a Carteira de Trabalho, e está providenciando o Certificado Militar, o Título Eleitoral e, por fim, o CPF. Irá juntar tudo isso a um laudo médico e solicitar o benefício.

Refletindo sobre essa sequência de acontecimentos, veio-me à mente a pergunta do título, e sou tentado a concordar que, sim, nessas circunstâncias o HIV foi uma ótima notícia.

Claro que conheço as dificuldades decorrentes: necessidade de estar sempre com a medicação em dia; risco de contrair infecções oportunistas; discriminação e preconceito, apenas para citar algumas.

Mas há o outro lado: hoje a síndrome do HIV é uma doença crônica, pode ser controlada a partir dos remédios, distribuídos gratuitamente pelo governo. Há a possibilidade do benefício da Previdência Social. Há uma rede de proteção ao portador do HIV, embora precária. E há a total incompatibilidade entre o uso dos remédios e a ingestão de álcool.

Francisco presenciou, enquanto estava internado, a morte de dois homens portadores do HIV que eram bebedores contumazes. Ficou de tal maneira impressionado com a situação de ambos que decidiu se abster do álcool para sempre.

Ele compartilha essa ideia. Acredita que isso ocorreu para o seu bem. Fico feliz em poder estar acompanhando tudo.

Deus quer sempre o melhor para nós. E, quando não nos mostramos receptivos a seu amor, Ele encontra outras formas de nos auxiliar - ainda que pareça exatamente o contrário.

31 de jan. de 2011

Liberdade

Costumo dizer que a função dos pais é a de ir paulatinamente dando aos filhos a liberdade de que eles precisam.

No início, pela força das circunstâncias, são os pais que tudo decidem pelos filhos: o que irão comer, vestir, a que horas irão dormir. A constituição física débil e dependente daqueles faz nascer o instinto de cuidados e proteção nos genitores.

Com o passar do tempo, as decisões vão passando à alçada infantil; obviamente de uma maneira calculada e progressiva, de acordo com a capacidade da criança em poder se determinar.

O ápice desse processo se dá na juventude, quando o indiviíduo, em princípio, já pode gerir de maneira autônoma seu destino, sem necessidade de uma interferência paterna para as coisas funcionarem. Liberdade dada antes da hora, ou depois, gera instabilidade, insegurança e dependência.

E um dos momentos cruciais desse processo de conquista da liberdade é o primeiro dia de aula da criança. Até esse instante, os pais ditavam as cartas e não eram incomodados por nada nem ninguém; sua palavra é a lei e ponto final. Os filhos lhes pertencem plenamente nessa fase; as crianças os imitam em tudo, e neles se espelham em suas interações com o mundo.

Tudo começa a mudar com a convivência rotineira e constante com outras fontes de influência. Os professores, e principalmente os colegas, passam a mostrar à criança outros mundos possíveis, outras formas de proceder e de viver. E, por essa razão, passam a influenciá-la, de maneira irreversível.

É claro que os pais continuam como a principal e mais relevante fonte de influência para a criança. O que muda nessa história é que os pais perdem a exclusividade, deixam de ser os únicos mentores do filho. Se, por um lado, isso é vital para o amadurecimento e o desenvolvimento emocional da criança, representa por outro o primeiro dos muitos golpes que o coração paterno irá suportar.

É como se o filho deixasse de ser dos pais e iniciasse sua trajetória na direção do mundo, a quem sempre pertenceu. E isso dói.

Mas depois passa. =) Na verdade, esse é o primeiro passo da criança na direção de si mesma.

Pedro começa essa jornada na quarta feira. E meu coração vai ficando menor a cada hora que passa.