20 de jul. de 2010

Pedintes

As casas do conjunto em que residimos têm por característica comum um muro baixo na frente, com cerca de 1,20m, e grades. Com o passar do tempo, alguns moradores ergueram muros altos, mas a grande maioria das residências manteve a configuração original.

Dessa forma, quem passa pela rua consegue ver parcialmente o interior dos imóveis, em geral o pátio na frente e a garagem. Em nosso caso, se a porta da cozinha estiver aberta, um transeunte mais atento conseguirá enxergar até mesmo a mesa de refeições.

Tal característica faz com que seja bem difícil alguém se esconder de um visitante. Com o muro alto, o sujeito pode acionar a campainha, bater palmas, dar pancadas no portão; se o morador quiser se ocultar, fingir que não está em casa, basta ficar bem quietinho.

Em alguns momentos, confesso que ter a vida devassada a todo instante não é agradável. Às vezes apenas queremos um pouco de privacidade, e quando nos damos conta há alguém nos olhando e, quase sempre, pedindo algo.

Aqui em nossa rua, notamos que os pedintes - moradores de rua, principalmente - preferem as casas "visíveis", em que conseguem enxergar algo, pois de antemão já sabem se há alguém no interior, ou não, e assim aumentam as chances de serem bem sucedidos.

Costumamos sempre tratar com respeito e atenção esses companheiros. Normalmente, eles pedem gêneros alimentícios, roupas, calçados e, no caso de alguns pedintes, dinheiro vivo para 'pegar o ônibus', 'inteirar a passagem de barco para o interior', 'comprar um remédio', etc.

Preferimos não atender a essa última demanda. Visivelmente estão alcoolizados ou sob o efeito de entorpecentes e entendemos que dar o dinheiro pedido seria alimentar o vício e assim não ajudar de fato o semelhante.

Para eles, oferecermos algum alimento que possa ser consumido naquele instante, um sanduíche, um prato de comida. Alguns aceitam, outros esbravejam, há os que simplesmente dão as costas e seguem adiante. O mais importante, em qualquer dos casos, é conversar de maneira amistosa e firme, dando um pouco de atenção respeitosa, fazendo com que o pedinte se sinta merecedor dela.

Por mais que essa "invasão de privacidade" possa ser constrangedora, ela é salutar. Se nos isolamos dos problemas das ruas, mantendo grades, cercas, portões entre nós e os demais; se nos enfurnamos nos condomínios fechados, remunerando vigias, guardas e outros profissionais para nos manter a salvo do povo, corremos o risco de viver em um mundo irreal, e de nos mantermos em um clima constante de paranóia e perseguição.

Não estou querendo dizer que, com essa postura, devemos abrir as portas de nossa casa a quem quer que seja ou deixar de adotar medidas de proteção em nome do "amor ao próximo". Longe disso. Todos merecem viver em paz e segurança e, como Jesus aconselhou, sejamos "simples como as pombas e prudentes como as serpentes".

Eis o que penso: os pedintes que nos chegam todos os dias estão, em verdade, a nos lembrar de nossa condição humana falível, e do nosso grau de compromisso e responsabilidade com as mudanças sociais, tão necessárias. Se não temos o contato com esses corações, corremos o risco de achar ou que o mundo não presta, ou que tudo está bem e não preciso me preocupar com nada. Nada mais alienado do que essa última alternativa.

Concluo que nós precisamos mais dos pedintes do que eles de nós. O alimento que lhes oferecemos logo é devorado; a roupa velha que não usamos e é doada logo se esfarrapa; tudo mais se consome de imediato e em geral não fica sequer o registro, na memória desses pedintes, do escasso benefício que lhes proporcionamos.

No entanto, os instantes em que nos detivemos a ouvi-los com atenção; os pensamentos positivos que lhes endereçamos; a memória que acionamos naquele momento, tentando lembrar o que pode lhes ser doado, tudo isso representa o BEM a nosso favor, e irá pesar em nosso proveito na economia moral e espiritual do mundo.

Acima de tudo, eles nos mostram que o mundo precisa de conserto e que, se o pedido chegou até nós, algo há para fazermos.

4 de jul. de 2010

Encontro com um xará

Todos que escutam meu nome completo fazem uma cara de surpresa. A partir daí o script é quase sempre o mesmo:

 "Mas esse não é o nome do primeiro governador/colonizador/presidente do Brasil? Lá no meu bairro/cidade tem uma rua/praça/escola com esse nome!"

 "O primeiro colonizador. Chegou aqui em 1531 e fundou a Vila de São Vicente."

"Então o teu nome é uma coincidência?"

"Mais ou menos."

"Mas seus pais sabiam quem era Martim Afonso de Souza? Eles fizeram de propósito? Foi uma homenagem? É o nome de tua família mesmo?"

As variações sobre o tema são mínimas. Costumo disfarçar bem minha cara de enfado (devo responder essas perguntas há pelo menos 30 anos) e esclareço que meu nome foi uma coincidência consciente, como classifiquei a escolha de meus pais.

Meu avô materno se chamava Martinho. Já do lado paterno há uma bisavó Afonsina e um tio chamado Afonso. Meus pais, assim, fizeram uma mescla desses nomes, adaptando o Martinho para Martim. E o Souza é de família mesmo. E é claro que meus pais sabiam do personagem histórico.

Na quinta série isso foi até charmoso, pois meu nome circulava nos livros, aulas e provas. Imaginem, eu era assunto da conversa das meninas. E houve uma época em que pesquisei algumas coisas sobre esse xará da história. Cheguei a encontrar na Biblioteca do Senado um exemplar das memórias do português ilustre. Tirei cópias, mas acabei perdendo depois.

Com a internet, você descobre que não é único. Bastou uma consulta às listas telefônicas e descobri vários homônimos espalhados pelo Brasil. Resolvi então relaxar e continuar respondendo com educação a todos que perguntam se eu sou da família do português ou se sou a reencarnação dele. Perguntas que os xarás do Brasil também devem enfrentar todos os dias.

O tempo passou e certa vez recebi um telefonema de um escritório de advocacia. Cobravam um cheque sem fundo passado a uma sapataria aqui de Manaus. No princípio estranhei, pois o banco era o mesmo no qual mantinha conta. Enviaram-me um fax com a cópia do cheque e vi pelos dados que não era eu.

Quem diria, um xará morando aqui em Manaus. Esclareci a situação, enviando cópias de meus documentos, e esqueci do caso. Até que...

Levei meu celular para a assistência técnica. No dia marcado para entrega, cheguei à loja e entreguei o protocolo. O atendente disse para aguardar pois iriam me chamar pelo nome. Como a loja estava lotada, tomei assento imaginando que iria demorar um bom tempo para ser chamado.

E segundos depois o altofalante anunciava: "Martim Afonso de Souza!" Levantei-me feliz e cheguei ao balcão junto a um senhor negro. O atendente perguntou: "Sr. Martim?" e nós dois "Sim." Parecíamos Indiana Jones e seu pai respondendo "Sim" ao mesmo tempo à pergunta "Doutor Jones?"

Era meu xará, e era o celular dele que ficara pronto. No princípio ele duvidou do meu nome, e tive de mostrar um documento de identidade para provar que eu era eu e ele ao mesmo tempo. Ele ficou radiante e me mostrou também sua identidade, feliz da vida por encontrar alguém com o mesmo nome, ainda mais mineiro radicado em Manaus, como ele próprio.

Na hora eu até lembrei do episódio do cheque e pensei em comentar, mas desisti. Era um encontro festivo. Conversamos ainda por algum tempo, ele me contou da vida  em Manaus, fiz um resumo acanhado de minha história e nos despedimos. Foi uma coincidência e tanto, estarmos no mesmo dia no mesmo local.

Hoje estamos por aí, honrando o nome de nosso xará famoso e o nosso próprio nome também.